A Responsabilidade Médica de Enunciar a Morte: O sentimento de fracasso profissional

Falar de morte ou até pensar sobre ela não é de todo tarefa fácil, todos sabemos. Negar que esta existe, pode ser usado como recurso, uma tentativa de evitar passar por experiências dolorosas e até, traumáticas. Mas ignorar a morte, ou fingir que esta existe, é também sinónimo de fantasia e ilusão da imortalidade (Kovács, 2005).

Imagem1Nos tempos passados, a morte era entregue ao domicilio da pessoa. Normalmente o ritual da morte era feito em casa. Hoje sabemos que a grande maioria das pessoas morre no hospital e é ai feita a primeira comunicação aos familiares, aos parentes próximos (Bellato & Carvalho, 2005). Para quem trabalha na área da saúde, falar de morte de um paciente, é sinónimo de fracasso profissional.

A tecnologia hospitalar prolonga a vida dos doentes, mas não ensina a família a saber lidar com a morte. Muito menos, capacita o profissional de saúde a saber enunciá-la na perfeição. O papel do profissional de saúde, em particular o do médico, representa a figura que determina a diferença entre a vida e a morte. É ele responsável por cuidar do doente, mas ironicamente, também ele responsável por enunciar a morte aos famíliares. Ao longo do processo da doença, o profissional combate a morte. Este sentimento de luta, é sentido como controlo da situação, como uma força. Contrariamente, quando ocorrem perdas, por vezes a possibilidade de elaboração do luto não existe, não há a expressão da tristeza e da dor para estes peofissionais. Esta situação em particular, é geradora de quadro depressivo nestes profissionais. Acredita-se que vários destes profissionais, necessitem de tratamento adequado, de ajuda na superação da dor simbólica do luto dos seus doentes.
Por outro lado, o facto dos profissionais de saúde lidarem constantemente com este paralelismo entre vida e morte, entre dor e sofrimento dos seus pacientes e dos respetivos familiares, faz com que não exista tempo, nem espaço para que eles próprios possam cuidar da sua dor, chegando mesmo a adoecer psicologicamente (Kovács, 2005).

Imagem2Num sentido lógico, se é a equipa médica responsável maior pela cura do doente, é também esta que maior vivencia sentimentos de fracasso e de desânimo face às situações da morte dos seus pacientes. Segundo Moritz (2002), o sofrimento psíquico destes profissionais está intimamente relacionado com as verdadeiras probabilidades do sucesso ou fracasso da doença. Para os médicos responsáveis pela comunicação da morte à família do doente, pede-se uma exigência sobre-humana, uma vez que as familias devem ser merecedoras de um cuidado especial no momento da comunicação da morte. Estes profissionais acartam consigo a difícil tarefa da comunicação de algo contrário à vida, algo que é díficil de lídar, algo que ninguém deseja ouvir.

Recorde-se que o processo de luto, o verdadeiro processo de luto é caraterizado por ser um momento de crise, que faz alterar profundamente o bem estar da pessoa, onde estão presentes sentimentos de tristeza e isolamento, humor depressivo, desinteresse, desânimo, afastamento. Porém podem também ocorrer momentos de hiperatividade acentuada e centralizada em preocupações, assim como apatia e inatividade. Na maioria dos casos, os médicos tendem a negar o seu próprio sofrimento e angústia perante a morte e perca de um paciente. Encarar a morte, significa não pensar nela. Por outras palavras, pensar a morte não é possível, pois o que se espera é que esta nunca venha a ocorrer.

Ao longo dos anos tem se investido, cada vez mais, para que ao longo da formação médica os profissionais possam estar capacitados de ferramentas que lhes permita comunicar e lídar com a morte de um paciente. Mas esta tarefa não é fácil, nem simples, por isso mesmo “como consequência última deste processo, temos a desumanização do atendimento àquele que morre (...)” (Bellato & Carvalho, 2005). Será que alguém pode ser capaz de se preparar verdadeiramente, depois de ter feito de tudo para que o paciente se mantivesse vivo, para lidar com a morte? Sabemos que a morte existe e que faz parte da vida do cotidiano dos profissioanis de saúde, mas isso implica que saibam lidar na perfeição com a situação? (Azeredo et al, 2011).

Imagem3Em 2010 foi realizado um estudo envolvendo estudantes de medicina no Brasil. Este estudo pretendia compreender melhor a realidade da abordagem sobre o tema da morte e, o processo de luto durante a sua formação univesitária. Muitos destes estudantes, afirmaram não se sentirem preparados para lidar com situações destas, sugerindo que se tornasse mais aberta essa conversa durante a sua formação e que pudessem usufruir de maior preparação nesta área em particular.

O médico é responsável por dar as más notícias à família, bem como lidar com as suas próprias emoções, é lhe ainda pedido que seja capaz de lidar com a imprevisibilidade da reação dos famíliares, bem como assistir às emoções (negativas) do próprio paciente ao longo da luta para a sua cura. Num estudo realizado em 2005, por Starzewski Júnior et al, que envolveu a entrevista a profissionais sobre o acto de comunicar as más notícias ou mesmo a morte do paciente, 50,9% dos médicos afirmou ter dificuldade em lidar com o tema em causa, 13,5% referiu ter mesmo muita dificuldade e 1,9% não chegou a falar sobre o assunto ou evita faze-lo.
A grande maioria dos profissionais descreveu igualmente que o acto de comunicar os casos de morte súbita, era o que consideravam ser o de mais difícil execusão, assim como os casos em que os pacientes não respondem ao tratamento. Este aspecto coincide com o receio da reação dos familiares do seu esforço e empenho para reverter a situação. O caso de morte de crianças com doenças graves também são as mais geradoras de ansiedade e stress para os profissionais.

Imagem4De acordo com Azeredo et al (2011), “a negação da morte coloca o profissional de saúde numa situação ilusória de onipotência que o protegeria dos seus receios e ansiedades. Para defender-se destas situações, extremamente angustiantes e difíceis, os profissionais que lidam com a morte muitas vezes isolam-se e fragmentam”. Esta fragmentação dá origem ao que já falámos anteriormente sobre a desumanização da situação, bem como ao aparecimento de um quadro depressivo nos profissionais.

Em 1996, Mendes & Linhares definiram dois tipos de angústia na confrontação da morte a que os profissionais estavam expostos. Por um lado, a fantasia da própria morte, por outro, a morte dos outros, principalmente os que se referem às pessoas ligadas emocionalmente ao próprio. Falamos assim de dois tipos distintos de encarar a morte. Para lidar com essa angústia, os recursos psíquicos usados pelos profissionais passam pela repressão dos sentimentos como factor de proteção e a utilização de competências emocionais defensivas.

O papel da psicologia pode ser fundamental, na medida em que funciona como agente facilitador da relação entre a equipa profissional, o paciente e a família, permitindo a criação de um espaço contentor da expressão das emoções, da dor, que se vai desenrolando ao longo de todo o processo (Silva, 2007). O profissional deve ser respeitado e sobretudo valorizado pelo seu papel. É fundamental que existam espaços destinados também ao apoio psicológico dos profissionais, dentro do contexto hospitalar para que se possa discutir e propor reflexões, expressar angústias e sentimentos, partilhar a dor e sobretudo, partilhar o que é sentido por toda a equipa.

Um profissional valorizado desempenhará melhor a sua atividade, permitindo obter uma melhoria significativa na qualidade do serviço prestado.

 

Referências:

Azeredo et al. (2010). O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de Medicina. Rev. Bras. Educ. Med. Rio de Janeiro, 35 (1), p. 37-43.

Bellato, R. & Carvalho, E.M. (2005). O jogo existencial e a ritualização da morte. Rev. Latino -am Enfermagem. 13 (1), p. 99-104.

Mautoni, M. & Soares, E. (2013). Conversando sobre o luto. Lisboa: Editora Ágora.

Medeiros, Luciana Antonieta e Lustosa, Maria Alice. A difícil tarefa de falar sobre morte no hospital. Rev. SBPH [online]. 2011, vol.14, n.2, pp. 203-227

Mendes, A.M. & Linhares, N.J.R (1996). A prática do enfermeiro com pacientes da UTI: uma abordagem psicodinâmica. Rev. Bras. Enfermagem, 49 (2), p. 267-280.

Pereira, M. (2008). Comunicação de más notícias e gestão do luto. Lisboa: Formasau.

Silva, M.G.G. (2007). Doença terminal, perspectiva de morte: Um trabalho desafiador ao profissional de saúde que luta contra ela... Revista SBPH, Rio de Janeiro, 10 (2), p.43-51.

Starzewski Jr et al (2005). O preparo do médico e a comunicação com familiares sobre a morte. Rev. Assoc. Med. Bras., São Paulo, 51 (1), p. 11-16.

 

A Psicóloga
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