Falar de e sobre negligência pode parecer fácil, mas na verdade não o é. Porquê? Porque apesar de todas as filosofias e teorias acessas sobre este tema, existem algumas controvérsias. Falar sobre o acto de negligenciar o outro, pode ser encarado como um momento de exploração e descoberta de algo que está por vezes, muito bem mascarado e camuflado na sociedade atual. Falar sobre a problemática da negligência, implica igualmente a sabedoria que cada um lhe pode atribuir, o seu significado ou no fundo, aquilo que representa de uma forma geral.
A negligência parental continua a ser um dos maiores fatores que contribuem para a abertura de processos de promoção e proteção dos menores, atingindo todas as classes sociais. Um dos grandes mitos existentes por muitas décadas, era de que apenas as famílias destruturadas e de baixos rendimentos económicos eram de certa forma, levadas a praticar este tipo de actos contra a criança. Na verdade, o que se tem observado cada vez com maior transparência, é que as familias ditas estruturadas e de classe média e média/alta são também incluídas. O que nos leva à questão: será tudo um problema da crise?
A ideia da crise global veio em certa parte, funcionar como justificação a todos os problemas que até então sempre foram dificeis de justificar. Mas será a crise a resposta correta?
Comecemos por definir de grosso modo, o que é a negligência parental. A negligência ou o acto de negligênciar, pressupõe que a criança está a ser privada das suas condições básicas. Falamos em algo tão simples, como a alimentação, a escola ou a saúde, mas por vezes fica “esquecido” o afeto e a atenção que por ser tão simples, para certas famílias, pode-se tornar num difícil bicho de sete cabeças. Muitas famílias, desde sempre foram negligentes. Apesar de tudo, sobreviveram a gerações e gerações e continuam a viver nos tempos modernos. Então, voltemos o problema para outra área...a revolução tecnológica, também pode justificar a negligência parental?
Recorrentemente está na moda o uso de tablet e smartphones à horas das refeições. Enquanto a familia se junta à volta da mesa, as crianças podem partilhar as suas vivências através da superação de níveis e da alta tecnologia que lhe colocamos nas mãos. Perdem-se os costumes da família e da partilha do dia-a-dia. A televisão está ligada, muitas vezes onde o ditador mais pequeno o exige. Não há por isso regras bem definidas ou uma verdadeira partilha de afetos e problemas que envolvem na verdade, todos os seus elementos, direta ou indiretamente naquele circulo, que até à muito tempo atrás se definia como família. Hoje designa-se por aqueles que prestam os cuidados e aqueles que os recebem. É tão mais fácil lidar com os filhos entretendo-os com um objeto avançado de tecnologia, do que lhes incutir valores reais que podem ser usados ao longo do seu crescimento e desenvolvimento em sociedade.
Somos os primeiros a não querer acreditar que o acto súbtil de magoar o outro, por vezes encontra-se mais próximo do que aquilo que imaginamos. Privar uma criança de ir à escola, quando está em idade obrigatória, ou leva-la ao médico apenas quando esta já contraiu alguma doença, são sinónimos de negligência parental. No entanto existem outras formas mais subtís, como desprezar o choro de uma criança bebe não satisfazendo as suas necessidades ou relacionar-se com o filho de 5 anos como se este fosse um robô, privilegiando a ausência total de afeto, carinho e relação emocional. Quantas vezes observamos na rotina diária o mais fácil... deixamos entregue aos avós porque “ela pediu muito para ir” (com 2 anos e meio de existência).
Estamos sem tempo. Vivemos sem tempo e nessa ausência de tempo, a negligência parental pode assumir muitas formas diferentes. Em 2006 Calheiros, definiu negligência em três grandes áeras: a negligência física, a negligência educacional e a negligência intitulada como falta de supervisão. A negligência física reporta-se essencialmente à omissão de todo e qualquer cuidado básico, tais como habitação, alimentação, higiene, vestuário e acompanhamento da saúde fisica. A negligência educacional está relacionada, com a falta de acompanhamento no âmbito escolar, no desenvolvimento da criança e na sua saúde mental. A falta de supervisão, última grande área, diz respeito ao acto de omitir a segurança física, social, estimulação e acompanhamento às crianças e jovens ( In Mind Portuguese,2012). Não seremos todos em certa parte, negligentes?
A negligência é considerada um fenómeno multifacetado e bastante complexo. Por vezes dificil de definir e de identificar. Muitos dos modelos teóricos existentes até à data incluem como preditores da negligência, fatores de risco e fatores protetores. Estes fatores dão-nos conta de um conjunto de situações/fatores que estão mais propícios a que alguém ou alguma familia seja negligente (factor de risco), ou por outro lado, que a familia tenha condições inerentes para que existam factores que previnam a negligência (fatores protetores). Dentro dos muitos factores de risco, Roi & De Paul (1993), destacam a falta de informação, situações de pobreza e a incapacidade para prestar cuidado à criança.
Quanto à questão da pobreza, é certo que as questões económicas e sociais podem aumentar o número de stress e conflitos, incluindo o familiar e consequentemente a maior abertura para que se pratique o acto de negligência. Contudo, não podemos encarar esta situação apenas com um olhar castrador. Tang em 2008, vinha a chamar a atenção para o facto das questões de pobreza social, não poderem justificar a negligência praticada como acto único. Para além das questões da pobreza, estão incluídos outros factores determinantes, como o consumo abusivo de substâncias ou a prática de actos ilícitos.
Muitas vezes é difícil trabalhar com as famílias, pelas suas dinâmicas muito vinculadas, pelas dificuldades de abertura ao outro ou ainda pelo simples facto de elas próprias não se considerarem famílias negligentes.
Uma parte das famílias negligentes, se não quase todas, têm muita dificuldade em aceitar que o são. Por vezes, não têm consciência que o que fazem (ou não fazem) é algo que prejudica gravemente o desenvolvimento dos seus filhos e que põe em causa as suas competências (negligência involuntária). É dificil aceitar este “rótulo”, quando uma família nasceu e se desenvolveu segundo determinados parametros e principios sociais e morais que a caraterizam como pais negligentes.
É sabido que cerca de 85% das crianças de uma ou outra forma, são negligênciadas ao longo da sua infância (Cook, 1991). Ainda não nos debruçamos sobre uma ideia que tem vindo a surgir nos últimos tempos. Será que a negligência é praticada em consicência por aqueles que prestam os cuidados à criança? Alguns autores acreditam que a negligência parental possa surgir em consciência ou não. Por outras palavras, a negligência pode ocorrer de forma voluntária ou involuntária. Falamos de voluntária quando o acto é praticado com a intenção de atingir/magoar o outro, ou negligência involuntária, como aquela que ocorre como resultado da falta de conhecimento, preparação ou incompetência pelas figuras que deveriam promover os cuidados.
Importa ainda salientar que a “intervenção em situações de negligência requer, de alguma forma, uma medida da sua frequência. Assim as situações de omissão de cuidados básicos à criança, são mais prejudiciais quanto mais frequentes ou recorrentes forem” (Monteiro, 2010).
Como se pode ajudar uma família negligente?
Antes de mais é preciso sinalizar a situação às entidades competentes:
- Comissões de Proteção de Crianças e Jovens
- Tribunal/Ministério Público
- Entidades Políciais
Após esta primeira deteção irá ocorrer um complexo processo de averiguação da situação real para melhor se compreender o que está a ocorrer. Aqui iremos apenas abordar a ideia centrada na questão familiar e deixamos de lado a parte técnica propriamente dita da intervenção.
É sobretudo essencial e fulcral criar empatia com a família e leva-a a reflectir sobre o que tem vindo a ocorrer. Posteriormente, é preciso pedir ajuda às entidades especializadas que promovam o desenvolvimento de competências parentais. A promoção destas competências irá ajudar os próprios (familia / cuidadores) a compreender o que está a acontecer e a aprender outras formas de lidar com o problema identificado. Este tipo de programas não é totalmente capacitante da alteração do comportamento, é por isso fundamental que seja o programa a ir de encontro às necessidades da família e não a família. Isto porque a familia, com estas carateristicas é bastante fechada em si mesma e terá dificuldade em aceitar segundas opiniões formadas, pois irão ser expostos as suas fragilidades mais primitivas.
Outra questão importante, está relacionada com a forma como a familia encara o problema. A família no seu seio, atribui a causa da negligencia por vezes a um único elemento (o pai, a mãe, etc.). Este elemento pode ser efetivamente a causa maior da negligência, contudo falamos de um conjunto de pessoas que á partida partilham um espaço e uma vivência comum que os coloca a todos “no mesmo barco”. Assim sendo, é importante envolver todos os elementos, mesmo que para isso surga a necessidade de incluir um tio mais chegado ou os avós.
O fenómeno da negligência parental, é em última instância uma responsabilidade de todos. Quer daqueles que a sinalizam às entidades competentes (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, Ministério Público, Tribunal, Entidades Policiais), quer dos que diariamente têm conhecimento das diversas situações (Escolas, Centros de Saúde, Autarquias, Colégios Privados, Familiares, Vizinhos, Amigos).
A negligência parental deve ser comunicada às entidades competentes para que ainda haja tempo para agir, haja tempo para salvaguardar o direito que a criança e o jovem têm em ser educado, ensinado e sobretudo para crescer em liberdade.
Bibliografia:
Almeida, A., André, I. Almeida, H. (1999), Sombras e marcas: os maus-tratos à criança na família, Análise Social, Vol. XXXIX (150), pp. 91-121.
Calheiros, M., Garrido, M. & Santos, S. (2011), Crianças em Risco e Perigo: Contextos, Investigação e Intervenção,Vol.1, Edições Sílabo, Lisboa.
Calheiros, M., Garrido, M. & Santos, S. (2012), Crianças em Risco e em Perigo: Contextos, Investigação e Intervenção, Vol.2, Edições Sílabo, Lisboa.
Centeno, J. (2013), A Negligência Parental –Representação Social dos Profissionais das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens na área Metropolitana de Lisboa. Tese de Mestrado em Política Social. Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas da Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, acedido em 03/06/2014.
Child Welfare information gateway (2008), What is child abuse and neglect? Administration for Children and Families, U.S. Department of Health and Human Services. Washington DC.
CNPCJR (2013), Relatório Anual da Atividade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, Lisboa, disponível em www.cnpcjr.pt, acedido em 03/10/2014.
Monteiro, S. (2010). Maltrato por Omissão de Conduta – A Negligência Parental na Infância – Estudo de Caso. Tese de Mestrado em Medicina Legal. Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, Porto, acedido em 06/10/2014.
Perry, B.D., Colwell, K. and Schick, S. (2002), Neglect in Childhood - Child Neglect in: Encyclopedia of Crime and Punishment Vol 1. (David Levinson, Ed.) Sage Publications, Thousand Oaks, pp. 192-196.
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