“Pau para toda a obra”

Saber quantos enfermeiros em Portugal têm formação pós-graduada e quantos estão a trabalhar na área de especialidade, foram duas das mais importantes questões colocadas a quem respondeu a mais uma edição do Census da Enfermagem, inquérito promovido pela Ordem dos Enfermeiros.

Mais que recolher dados importa olhar para eles, interpretá-los e refletir sobre a realidade que nos é apresentada em forma de dígitos e percentagens.

São cerca de 9% os inquiridos que, apesar de possuírem formação pós-graduada, não solicitaram a atribuição do respetivo título de enfermeiro especialista á Ordem dos Enfermeiros. São profissionais de saúde que investiram na sua formação pós-graduada mas abdicam do título, assim como de fazer valer as competências adquiridas e oferecer ao cidadão a mais-valia dos cuidados de enfermagem especializados.

Não deveremos parar e refletir sobre os porquês de tal acontecer? Qual o sentido de investir numa formação que, na prática, não serve para alterar a prática clinica, diferenciar as áreas de atuação dos enfermeiros e aumentar o seu valor no mercado de trabalho?

Numa altura em que estudos e recomendações internacionais apontam para o reforço das áreas de atuação dos enfermeiros como garantia da sustentabilidade do SNS encontramos, nos mais variados serviços, enfermeiros especialistas a trabalhar numa lógica de polivalência. Existem em Portugal mais de 7000 enfermeiros especialistas em 6 áreas de especialidade (Reabilitação, Saúde Infantil e Pediátrica, Saúde Materna e Obstétrica, Médico Cirúrgica, Comunitária e Saúde Mental e Psiquiátrica), com competências específicas e áreas de atuação próprias, para as quais os enfermeiros de cuidados gerais não estão habilitados, mas que acabam a exercer nos serviços onde há maior carência de pessoal e onde, sem qualquer critério, vão sendo alocados.

Além da estranheza que esta questão possa suscitar há ainda que perceber se não estaremos perante uma situação de negligentes no que toca à proteção ao cidadão que tem o direito a saber se está a ser atendido por um enfermeiro de cuidados gerais ou por um enfermeiro especialista, o que hoje é quase impossível porque todos estão identificados no seu crachá como, simplesmente, enfermeiro.

É fundamental para que as políticas de saúde e os serviços rentabilizem as competências especializadas dos enfermeiros. É uma questão de identidade e de identificação. Se por um lado os enfermeiros especialistas têm direito de serem identificados pela sociedade como profissionais mais qualificados, com um campo de atuação diferenciado dos demais, por outro o cidadão tem direito a saber que um determinado enfermeiro especialista está habilitado e autorizado a prestar-lhe um cuidado especifico.

A categoria de enfermeiro especialista foi eliminada na última alteração da carreira especial de enfermagem que ocorreu em 2009 e teve consequências muito negativas para a profissão e para a organização dos serviços, o que nos leva a questionar como podem as políticas de saúde e estratégias do Ministério da Saúde considerar as competências destes profissionais quando o último inventário de recursos humanos do SNS publicado pela ACSS não reconhece a sua existência e regista todos como apenas enfermeiros. Num quadro incongruente como este poder-se-á mesmo dizer que é fundamental conhecer a distribuição de enfermeiros especialistas no país e por tipologia de serviço para avaliar a dimensão do desperdício, mas também para preparar medidas que resolvam este paradoxo. Num país que tem sobrevivido com muita dificuldade à crise económica, onde vários estudos e relatórios apontam para a necessidade de reforço dos cuidados de saúde de proximidade é incompreensível que se continue a desaproveitar a capacidade de intervenção dos enfermeiros especialistas que acabam por ser “pau para toda a obra”.

 

Lúcia Leite, atual vice-presidente do Conselho Diretivo da Ordem dos Enfermeiros e Candidata a Bastonária

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